domingo, 19 de junho de 2011

O perigo do regresso à sazonalidade


Em certas circunstâncias, o homem volta-se contra si próprio. Quase sempre, quando o faz, precisa de desconsiderar e até mesmo de desprezar imensos grupos de semelhantes. A primeira metade do século XX representa um dos maiores períodos de amesquinhamento das populações, dos trabalhadores braçais, das mulheres mães, das crianças de miséria. O trabalho agrícola sazonal, pela massificação das movimentações da mão-de-obra e pelos cíclicos abandonos de gente faminta foi, em Portugal inteiro, uma das piores chagas sociais e humanas. Representou uma brutalidade sem fim, marcando gerações que, saindo para a indústria, para a estiva ou para a emigração, continuavam a ser humilhadas e esmagadas sob o peso da fome e do ostracismo. No Alentejo,  o trabalho sazonal teve grande visibilidade até muito tarde. Em outras regiões, tratava-se apenas do problema da fome e da emigração, ou seja, escamoteava-se a organização do trabalho.
Como assinalámos no nosso "A Reforma Agrária em S. Manços", "O elevado grau de sazonalidade do trabalho poderá ser imputado à ineficiência das explorações e, até, à incompetência de muitos lavradores, fazendo-se paralelismo com alguns estudos internacionais sobre a sazonalidade agrícola."
Hoje, uma das principais pechas do pretendido regresso à agricultura é a desconsideração do trabalho sazonal. Trabalhando apenas alguns meses, ainda que 7 ou 8, com salários mínimos, nenhuma família se constitui com o mínimo de dignidade. Pelo contrário, é muito importante que se saiba que a a vinha e o olival regados, o regadio comercial intensivo e algumas outras formas modernas de poluição agrícola (na lógica do "tira hoje o que podes, que amanhã alguém há de pagar") são belos negócios, com grandes ligações em cadeia ao capital financeiro, aos grupos da distribuição e ao cerne da CEE e da PAC.  Exige-se que o discurso pró-agrícola seja confrontado com a questão do trabalho. Do CDS ao PCP o silêncio, neste ponto, é comum e intrigante.

Os partidos políticos e a reforma agrária

Excerto do livro "A Reforma Agrária em S. Manços":


Todos os partidos apresentam, a partir de Maio de 1974, programas de Reforma Agrária. O PS e o PCP propõem a nacionalização ou expropriação dos grandes latifúndios, para entrega a cooperativas de trabalhadores e agricultores ou para parcelamento em exploração familiar. O PPD confere primazia ao direito à exploração sobre o direito de propriedade e propõe o arrendamento compulsivo ou a expropriação da terra subaproveitada. O CDS projeta ações de parcelamento e de emparcelamento de forma a obter unidades produtivas bem dimensionadas e a democratização do capital fundiário nas regiões de grande propriedade. O PPM defende uma verdadeira política antilatifundiária [Maria Almeida; Barreto, 162 e ss.].

A ALA, uma organização de agrários, dirigida por grandes agricultores capitalistas modernizados, a 21 de Maio, divulga em Beja um esboço de programa para a reestruturação agrícola em que reclama medidas para impedir que haja terras mal exploradas [Almada, 43] e a revisão das estruturas fundiárias com vista à criação de unidades de produção. Apoia Spínola na tentativa de golpe de 28 de Setembro. Em Outubro, apoia os planos do Governo, anunciados por Rui Vilar e Armando Bacelar, ambos do PS, para promover o arrendamento compulsivo das terras incultas [DL 10e 18/10/1974]. (…)

O PS e o PSD competem em manifestações e comícios de apoio à Reforma Agrária. Se a 29 de Maio, num colóquio em Lisboa, o PS pretende a entrega da terra a quem a trabalha, a 11 de Junho, o PPD sugere um programa de Reforma Agrária; a 12 de Outubro, antecipando-se ao que poderia sair do congresso do PCP, o PS propõe medidas de expropriação do latifúndio [M.R. Sousa, 210], no que é acompanhado pelo PSD, nos comícios de Valpaços e de Alenquer, a 9 de Novembro e 15 de Dezembro [Almada, Diário]. Em Novembro, o PS diz ser tempo de avançar com a Reforma Agrária pela expropriação de grandes sociedades agrícolas latifundiárias pouco produtivas [Público, dossier]. A 9 de Março de 1975, em campanha eleitoral, quando as ocupações iniciadas em Fevereiro estão suspensas, Mário Soares promete em Montargil a entrega da terra a quem a trabalha. A 12 de Abril, ao Times, declara-se apoiante da Reforma Agrária, advertindo: temos de ter cuidado para não virmos a estabelecer um capitalismo de Estado [DL 12/04/1975].

Álvaro Cunhal remete a Reforma Agrária para um desenvolvimento ulterior [DL 24/09/1974], que consistiria em entregar terras incultas ou de latifúndios aos pequenos agricultores [DL 16/12/1974]. No congresso de Outubro, o PCP não a reclama [Brito, 111], preconiza apenas a entrega dos incultos a cooperativas e pequenos agricultores [DL 21/10/1974]. O “Avante”, seu jornal oficial, não lhe faz menção em 1974. O partido parece concentrar o discurso nos problemas dos pequenos agricultores, nas regiões de minifúndio, apostando na nova lei de arrendamento rural, na lei dos baldios e na abertura de linhas de crédito [DL 17 e 24/06/1974].
Será a 9 de Fevereiro de 1975, numa conferência em Évora, que Álvaro Cunhal proclama: pelas mãos dos trabalhadores a Reforma Agrária deu os primeiros passos e é preciso reforçar a organização e a unidade dos trabalhadores. Pede também a entrega de terras desaproveitadas aos trabalhadores em concordância com as medidas do Governo. Os americanos, que pelos vistos não valorizaram avisos semelhantes do PS, percebem então que a Reforma Agrária está na ordem do dia [T.M.Sá, 216; Piçarra, 2004(1], 209; DL 10/02/1975, Avante, 13/02/1975]. O discurso do PCP nos meses seguintes será marcado pela ambiguidade de reclamar leis de Reforma Agrária e expropriações, sem mencionar expressamente
as ocupações, mas propondo a organização das novas unidades de produção [Moção de sindicalistas reunidos em Évora a 25/05/1975, Arq. GCE,pasta Z-6-4]. Álvaro Cunhal anuncia a 30 de Março: “A Reforma Agrária está hoje ao alcance da nossa mão: é uma questão de dias ou de poucos meses” [DL 31/03/1975]. A 6 de Abril, num comício em Santarém, incita os trabalhadores rurais a seguirem o exemplo do Alentejo na ocupação de terras abandonadas ou mal aproveitadas. A 14 de Abril, em Estremoz, António Murteira, do PCP, declara: a Reforma Agrária tem de ser uma realidade em breve, embora não seja ainda a reforma que o PCP deseja [DL 15/04/1975]. Álvaro Cunhal, em diversas aparições públicas, designadamente no comício de Baleizão a 18 de Maio, vai prometendo: 1975 será o ano da liquidação dos latifúndios [Almada, p. 162]. Mas aconselha os trabalhadores a evitar as greves e as reivindicações salariais [DL 19/05/1975]. (…)

Em Julho de 1975, todos os partidos com assento na Assembleia Constituinte apresentam projetos de Reforma Agrária, fosse simplesmente pela nacionalização das propriedades rurais por explorar ou inconvenientemente exploradas [art. 39 do projeto do CDS], fosse para pôr a terra e a produção agrícola ao serviço do Povo e garantir o acesso dos trabalhadores rurais à propriedade da terra, através da entrega da exploração dos latifúndios mal aproveitados ou nocivos a pequenos e médios agricultores e a cooperativas de trabalhadores [art. 70 do projeto do PPD], ou, mais amplamente, pela transferência da posse útil da terra para aqueles que a trabalham [art. 56 do projeto do PS], ou ainda pela expropriação total do latifúndio [art. 16 do projeto do PCP] [Miranda, Vol. I].

Em Abril de 1976, com os votos maioritários do PS e do PSD, é aprovada a Constituição da República, que consagra uma Reforma Agrária antilatifúndio, com unidades de produção coletivas de trabalhadores rurais ou pequenos agricultores. Acolhe do projeto do PS a noção de posse útil [arts 96 e 97 da constituição], enquanto modo de produção coletiva dos bens do sector público não geridos diretamente pelo Estado [arts 89 e 90]. As revisões constitucionais subsequentes tornarão claro que o sector de propriedade social não tem qualquer reflexo prático [Namorado, 155]. (…)

A Reforma Agrária portuguesa 1974-1077

Excerto do livro "A Reforma Agrária em S. Manços":

A Reforma Agrária tem de ser compreendida no campo mais vasto do quadro internacional, das relações de produção, das políticas de emprego e do jogo de poder entre os militares, os partidos, as classes dominantes e a burguesia urbana. Poderá talvez assim compreender-se por que os principais partidos do leque governativo inverteram os seus projetos de Reforma Agrária, menos de três anos depois de darem início à sua aplicação.
Como será típico das revoluções camponesas [Wolf, 294, 296, 301], a Reforma Agrária compreender-se-á naquele sistema de controlo  político centralizado, que suplanta uma primeira fase de explosão e revolta dos trabalhadores contra a injustiça e, quase imediatamente, instala mecanismos burocráticos de dívida, subvenção e delimitação dos mercados e das produções, que torna a confinar a terra ao pousio cerealífero ou pecuário e a aldeia a uma dimensão estrita de meio rural sem sonho possível. À pergunta “porque é que os trabalhadores se revoltaram?”, deve acrescentar-se uma outra: “porque é que as classes dominantes permitem o monopólio da terra por um estrito grupo de proprietários?”
A Reforma Agrária portuguesa resolveu o problema social, insolúvel no Estado Novo, que passava por expulsar dos campos a população rural considerada em excesso, para satisfazer as exigências do novo ciclo, que dispensa o trabalho do homem e dispensa inclusive a produção agrícola.
Em 1975, o Estado tomou para si a terra, através das expropriações, e cerca de três anos depois restituiu-a aos mesmos proprietários, limpa de custos sociais. Esta perspetiva, ainda sob comprovação, recoloca a Reforma Agrária na atualidade – não pelo que representou de revolucionário, mas por ter permitido a mudança para a estratégia global ainda vigente.
Quando (e se) o desemprego ultrapassar certos limites não suportáveis pela sociedade em geral, a grande exploração pode retomar, se subsidiada, o seu papel de empregadora sazonal. A campanha do trigo de 1929 foi, em certa medida, uma resposta ao problema do desemprego, na lógica da propriedade agrária, e não da exploração agrícola.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Biopolítica alentejana

É muito difícil avaliar o mal que a sociologia fez à história. Um ensaio sobre o contemporâneo, como o nosso “A Reforma Agrária em S. Manços”, será sempre criticável sob a perspetiva dum social quase totalitário, das condições de vida, às situações de fome, das “formas de luta” (jargão esquerdista de extrema infelicidade) à repressão policial e política, como também o será no que se refere à produção agrícola (cujos dados foram deliberadamente omitidos do nosso ensaio para que não caísse num estatismo redutor, pois é o Estado que produz incansável e erraticamente tais fontes), e à relação capitalista do lucro com o trabalho. Um estudo sociológico coevo é mais inútil à história do que o jornal de ontem e, no entanto, parece aos presentes tão prenhe de relevância quanto se deixa embeber pelo discurso da época.
Perdoem-me pois os sociólogos da história, quanto não lhes perdoo a crítica das omissões e das incompletudes. Na verdade, não interessa uma sociologia da fome, tanto mais que, pelo menos aquela, já passou. Por outro lado, não houve, nunca, resistência significativa ao processo de proletarização. Não faz sentido apurar agora porque falhou a luta de alguns. Na pequena história das relações familiares e de entreajuda, apuram-se milhões de resistências e de humilhações, de amarfamentos e privações de liberdade. A luta, e sobretudo a derrota, foi muito mais global.
O Alentejo não foi o lugar da fome, do trabalho sobre-humano, do sacrifício, da exploração crua do próximo (aí a Beira ou a serra algarvia ganham-lhe aos palmos). Foi sim um território de proletarização organizada, adestrada e vigiada. Por isso, tem merecido tanta atenção, enquanto lugar de biopolítica.
O tema do nosso ensaio não interessa aos sociólogos, nem aos políticos. Quem vive próximo, contra ou a favor, do poder, nunca o põe verdadeiramente em causa. Ora, não é possível defender a agricultura sem combater, em simultâneo, o trabalho sazonal. Hoje, algumas almas penadas importam por alguns meses trabalhadores vietnamitas. El Ejido está em decadência. E ainda assim, da esquerda à direita, do proprietário avondo ao amanuense aposentado, um coro de boas intenções propugna a sazonalidade, à pala de um El Dorado de pepinos transgénicos.
 

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Pacheco Pereira e o autocolante da cooperativa Unidade dos Trabalhadores de S. Manços

O blogue ephemerajpp, de José Pacheco Pereira, publica o autocolante da UCP de S. Manços, que também publicámos no primeiro artigo deste blogue. Pacheco Pereira persegue um objectivo difícil de catalogar e divulgar inúmeros detalhes do período abrilista - o que é notável.
http://ephemerajpp.wordpress.com/2010/12/26/cooperativa-agricola-unidade-de-s-mancos-evora/

domingo, 15 de maio de 2011

Vitor Constâncio e a Reforma Agrária

A fls 80 do livro "A Reforma Agrária em S. Manços" citamos o DL de 15 de Janeiro de 1975 para concluir que Vitor Constância anuncia a Reforma Agrária. Todavia, incorremos em dois erros, que aqui pretendemos corrigir. As declarações não estão no DL de dia 15, mas sim do dia 25 de Janeiro - um lapso de escrita. Por outro lado, as declarações que transcrevemos são do jornalista e não do própio Vitor Constâncio - aqui o lapso é um erro, de que nos penitenciamos. O jornal está consultável no site da Fundação Mário Soares.

Publicamos o excerto do livro com as correções:
O III Governo de Vasco Gonçalves, que vinha adotando medidas de controlo do sector financeiro e de intervenção em empresas privadas, mandatara Rui Vilar, Vítor Constâncio, Silva Lopes e Maria de Lurdes Pintassilgo – todos conotados com o PS ou com os moderados – para elaborarem uma proposta de plano económico, a partir de um relatório de Erik Lundberg, um economista sueco, de modo a abrir caminho a importantes financiamentos externos à depauperada economia portuguesa. O MFA considerará a proposta de plano pouco avançada e propende para a nacionalização da banca. O PCP pugna pela eliminação dos monopólios e dos latifúndios e conta com boas relações na cúpula do MFA que lhe permitiriam uma nova aceleração do processo revolucionário [Brito, 128-131]. Passa a exercer um papel muito interventivo junto dos movimentosoperários e sindicais e a apoiar decididamente as nacionalizações [Suárez,145]. Melo Antunes negoceia o consenso numa assembleia do MFA que se prolonga por oito dias. Acordam que a banca não seria nacionalizada mas, a par de outras alterações, preveem a nacionalização dos regadios para além de certos limites a definir pelo Estado [M.R. Sousa, 206, 282-288]. O PCP está contra. O plano apresenta-se assim como moderado e sob influência de Melo Antunes [Ramos, p. 727].
Vítor Constâncio, coautor do plano, anuncia publicamente em Janeiro que o problema dos latifúndios carece de ulteriores estudos, em termos que os jornalistas do DL aproveitam para concluir que se prevê a nacionalização de importantes sectores da economia e a cooperativização da agricultura, ao nível de certos latifúndios. Aditam que existe uma real vontade e capacidade de iniciativa e trabalho da parte dos sectores populacionais ligados à agricultura que nunca tiveram terra para cultivar e agora podem, finalmente, aproveitá-la a bem da comunidade  [DL 25/01/1975]. Será este o primeiro  anúncio da Reforma Agrária.
A 7 de Fevereiro de 1975, o Governo aprova finalmente o programa de política económica e social, que estabelece áreas máximas de exploração de 50 ha para as zonas de regadio promovidas pelo Estado e, para o latifúndio, a obrigatoriedade do cumprimento de programas de exploração que satisfaçam normas mínimas de aproveitamento cultural, com arrendamento compulsivo ou expropriação das terras incultas ou insuficientemente exploradas [Arq. GCE, Pasta P-5]. Admite a possibilidade de se expropriarem propriedades de área superior a 500 ha [Bermeo, 52]. Parece estar em consonância com as posições públicas do PS, do PPD, dos sindicatos, da LPMA e da ALA. Constitui um avanço sobre a política de emprego rural e de obras públicas seguida até então, bem como sobre a política de arrendamento compulsivo que Rui Vilar havia anunciado em Outubro [DL 10/10/1974].

Fotografias da Reforma Agrária em S. Manços



trabalhadores rurais de S. Manços

No escritório da Cooperativa Agrícola de Produção Unidade dos Trabalhadores Agrícolas de S. Manços, CRL conservaram-se algumas fotografias que documentam momentos da reforma Agrária. Em geral em mau estado, foram melhoradas digitalmente por Manuel Baião. Desconhece-se a autoria . Publicamos aqui as principais que, por motivos económicos, não puderam ser incluídas no livro "A Reforma Agrária em São Manços". A foto que encima este blogue faz parte do conjunto.
sessão política, com visitante (por identificar)

12/02/1975, a caminho da ocupação de Botaréus

comemorando a primeira colheita de tomate

visitante (por identificar) (repare-se na ara romana)

ceifeiras da cooperativa

vista do belo monte da Cabida da Torre, comprado pela cooperativa